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terça-feira, 27 de agosto de 2013

Anotações para uma carta




Imagem: http://carvalho-euvocens.blogspot.com.br/


Posso te dizer como ele cantava? Assim, de uma forma meiga e inusitada em seu grito rasgado e calor apavorante, extraído dos finos fios pútridos de suas vestes. Mas, de um canto quase nu - refiro-me a abstração primeira a alvoroçar minha imaginação rodopiante, da qual retirei a prisão que minha alma não paga em lugar nenhum, senão no receptáculo do riso frio, encoberto pelo canto singular que outrora trouxe o embriagamento e o sabor apimentado das doces palavras soltas, acudidas no interior de uma noite ainda não identificada.

               Sim, ela, a que diz da forma galanteadora do canto, mas que não passa da aparição promíscua de minha personalidade quando fora ingênua, não passara da sombra vergonhosa que lançara palavras soltas e decadentes a passar por entre os sortilégios da passarela do destino - o que, lavado pelo esculpir do tempo, não demora em se apresentar nas formas de um príncipe galanteador e supremo em seu reino de fantasias.

              Não posso dizer que as finas notas, proferidas pela sua boca morna e intumescida, não cortaram alguma parte de mim que ainda não pudera sentir! De sua correnteza invadida pelo toque musical, vi desencadear o paraíso povoado de chamas infernais, o eterno paradoxo.

              Como parte de mim, já se dizia do exílio do espírito, das estranhas moradias procuradas nas horas que antecediam a manhã de minhas confusões tardias; estava tudo muito simples e previsível até a chegada daquelas palavras que escorregavam pelos meus ouvidos como o vinho ousado que desce voluptuoso, parando em cada curva, deixando seu toque, seu sabor marcante e o delírio inesquecível do momento único, mas nem sempre curtido em simetrias e perfeições.

            Voluptuoso, exatamente como o vinho que acabo de imaginar e traçar seu sublime toque aveludado, sua música parara como uma nuvem escura, permeada de batidas sustenidas a arrancar de minha profunda quietude o embalo discreto dos risos que fora outrora das viçosas concubinas, mas que se instalara em minha garganta como o burburinho das cortesãs impossíveis ao cavalheiro mais nobre da corte.                                                   



                                                        *  *  *





domingo, 25 de agosto de 2013

A crise das relações


Imagem:http://esplendordacriacao.blogspot.com.br/2012/07/depende-das-maos.html


O Estado deve fazer o que é útil. O indivíduo deve fazer o que é belo – Oscar Wilde (Escritor irlandês - 1854-1900)

 A humanidade encontra-se em crise em suas relações humanas. Diante de fatos corriqueiros e, por assim dizer, cotidianos, os comportamentos são desvendados como as grandes crises nos divãs dos psicanalistas. Conversas sérias passam despercebidas enquanto o descaso e o desprezo pelos idosos, crianças, mulheres e homossexuais, além do desrespeito mútuo, aceleram o processo de desigualdades e tomam o palco na insustentável tragédia da vida. Poucos são os que conseguem escapar e não serem notados ou sacrificados pela imposição sórdida dos que reclamam os dias de glória e suas benesses para si.

Ouvem-se inverdades, correntes de incertezas, impulsos corruptíveis e crises de consciência. Sim! Porque ainda existem consciências por trás desta cortina de fumaça humana, quando poucos foram os que conseguiram escapar, como os cita Oscar Wilde em sua lista preciosa de gênios quando escreveu A Alma do Homem sob o Socialismo: Darwin, Keats, M. Renan, Flaubert.

As consequências implacáveis que assolam a vida dos indivíduos nesses dias contemporâneos geram uma cadeia de interdependência forjada no egoísmo supremo, advindo da insatisfação e do vazio que permeiam tais exigências - tão passageiros quanto a cólera dos que não se sobressaem na ala das luzes da sociedade.

Percebe-se que o olho no olho já não fala as mesmas palavras de outrora, pelo contrário, revela-se ai a face temível e o ruído de palavras não-ditas, desprovidas de humanidade. A exemplo, podemos tomar as levas de crianças abandonadas e famintas nas ruas, que acordam já com a dor em seus estômagos vazios, carentes de água, comida e esperanças de felicidade, a que parece tê-las abandonado ainda no útero de suas mães.

Quando Oscar Wilde alude ao individualismo do ser, ele quer dizer que as necessidades do homem necessitam do suprimento diário, para que possa viver de forma digna e sublime, complementando as sutilezas de seu instinto puramente espiritual e humano.

A busca pela felicidade é real e vista todos os dias estampada na cara das pessoas; muitas são as teorias e livros escritos, cruéis receitas infalíveis e conselhos corriqueiros. O segredo se encontra na individualidade de cada um, no autodesenvolvimento, na busca suprema personalidade e do eu que se submeterá o indivíduo.

                                                        *  *  *





domingo, 11 de agosto de 2013

Sinais, cores e malabarismos da vida

Imagem:http://redeglobo.globo.com/talentos/gogoia/br-confidencial/platb/2013/03/12/atento-aos-sinais-de-ney-matogrosso/


Em sua turnê comemorativa aos seus quarenta anos de carreira, o artista Ney Matogrosso retornou a Porto Alegre, nos dias oito e nove deste mês de Agosto, para apresentar o show “Atento aos sinais”. Não fui assistir ao espetáculo do Ney, mas parecia mera coincidência quando li nos noticiários da TV, nos jornais, nas revistas e em muitos outdoors espalhados pela cidade que o artista estava hospedado num dos hotéis mais tradicionais, renomados e contemporâneos da cidade, localizado no Centro Histórico.


Penso sempre no estilo carregado de mensagens, cores e malabarismos do Ney Matogrosso e seus personagens interiores. É faustoso e incrível de ver sua corte e sua produção colossal que fazem as almas flutuarem no ambiente.


O que inspirou o título de sua turnê foi “Oração”, do compositor Dani Black. Confesso que ainda não conhecia a música, mas quando ouvi senti algo mais inspirador ainda, pois em mim explodia a oração que pedia o fim do vazio dos dias iguais, e que eu também não iria ceder às provocações nem às tempestades do mundo. O amor era o que eu pedia e o que Ney trouxera para o povo. Entrei no diálogo, na música, na oração e me recriei.


Estou atenta aos sinais do mês de Agosto. Nestes dias oito e nove, soube que Ney foi encantador com os colaboradores do hotel e seus fãs que pediam autógrafos e estavam loucos de curiosidade sobre a vida dele. Queriam ver o personagem mais de perto, com perfeições e imperfeições, como humano, gente que vive no mundo real e podia deixar uma mensagem de um artista que sabe viver e cantar a vida.


Eu acompanhara tudo de perto, nesses dois dias, próxima aos atos e comentários, com minha discrição, moderação e uma vontade louca de pisar logo aquele chão tão íntimo e ao mesmo tempo desconhecido - que seria em breve meu novo local de trabalho -, o mesmo que o Ney Matogrosso se hospedara e desfilava simpatia e humanidade para os que o esperavam na porta do hotel, com câmeras, canetas e papeis na mão. Um registro, apenas, e não se fala mais nisso! 


Naqueles dias também eu fui entrevistada, muitos olhares miravam em minha direção, assinei muitas folhas – para mim era algo como um autógrafo, pois estava no palco da minha profissão, me apresentando, crescendo, evoluindo com as oportunidades. Eu estava em outro hall, oposto, mas sabia que dividia o mesmo espaço com o Ney. Todos que estavam ali pareciam alinhados no mesmo ritmo da hospitalidade e do bem receber.


Se fosse somente sobreviver, não haveria motivos para continuar. Há algo maior: a vida que se abre nas mãos, com novos personagens e pessoas reais que dão o tom, a vibração e o sentido necessário - isto basta.

                                           ***

domingo, 4 de agosto de 2013

Espetáculo do olhar




 
Imagem:http://pdphoto.org/
Decidimos partir à tarde, não muito cedo, nem próximo ao crepúsculo, pois ainda tínhamos mais planos para o fim do dia. 

Não pude me conter ao pensar que nosso destino era a colônia das múltiplas linguagens que teríamos que usar para transpassar os limites do olhar – íamos para o zoológico! Quis ver o passeio – ou aventura – pelo meu reino fantástico da psicologia espiritual, que tenho tentado me aperfeiçoar a cada dia, como a experiência do contato – essa incrível capacidade que faz os mais sensíveis e impressionáveis seres pagarem um preço elevado pelo que acreditam no ambiente do espetáculo.

Sempre soube que no zoológico ficam expostos para visitação – como nas vitrines de lojas, desde as mais modestas até as de grifes luxuosas, animais de espécies, gêneros, famílias e todas as nomenclaturas científicas que os organizam numa classificação harmônica que define o reino ao qual pertencem.

A enigmática diferença de tudo para mim está no ato de ver, se toco o ser ou o que está impregnado dele, já faço parte do que sinto, mesmo que de espectadora da sua continuidade ainda não revelada – é que não se pode saber do próximo passo, qual o sentido de rumo que ele tomará, nem nas próximas horas.

Fui tomada, à entrada, em que se estendia um grande e explicativo mapa-roteiro para encontrar os grupos de animais que podiam despertar o interesse do visitante – naquele momento, o nosso – então já digo que me senti instigada por todos, pois imaginar formas de vida e comunicação é o que me tem feito escrever ou pensar como se escreveria isto ou aquilo.

Na primeira rota que escolhemos, para ver os animais de grande porte, ainda não sabia o que sentir – não era apenas curiosidade, era quase o medo de sair sufocada por uma falta de liberdade. Os animais estavam presos, exibidos, expostos a qualquer olhar que não se pode mensurar o nível de bondade ou crueza – estavam longe do seu habitat natural, presos em jaulas, inescapáveis.

O espetáculo é o que atrai, o diferente mobiliza e até bestializa o ser humano – vi muitas pessoas tentando imitar caras, bocas e até uivos que pudessem chamar a atenção dos animais, que pareciam estar numa crise de mau humor. 

Andamos bastante, de grupo em grupo, vez por outra uma olhada no trajeto – primeiro aqui, depois o outro -, e assim passamos a maior parte da tarde. Nada parecia mais novidade – a graça havia no charme sem pretensão dos animais -, era tudo quase como um grande circo que tinha seus números em horário marcado para apresentação – acho que fiquei farta de ver belezas na sociedade do espetáculo para satisfazerem os olhares que pagavam caro por algumas horas de atrações. 

Desejaria mesmo saber que todos aqueles animais estariam logo em seus espaços e linguagens originais, pois eles vinham de várias partes dos continentes e parecia que ali, estavam somente à espera da liberdade – queriam saber que eram livres em suas naturezas. 

Foi o que pude sentir, sem toques, apenas com o olhar que me fazia entender o universo incomprimível do outro, pois a grandeza se mostra mais no que não está aparente, mas no que se oculta na carne. Não sabia se sofria, se olhava com a alma embotada e sufocada, ou se o que via era um misto de redenção e do que sempre desejei sentir diante do traço disforme que passa por mim, separado apenas pelo meio-fio, que parece falar o que eu não gostaria de escutar. Mas já se falou, sentiu, e não se pode voltar atrás.

                                         ***