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Existia um demônio dentro da Srta. P. que emendava diálogos todas as
noites e fazia rondas obscuras em seu recinto celestial. Seu demônio via-se
como um fugaz sobrevivente da fúria que desencadeou seu banimento da rota
celeste.
- Srta., acorde! Bradou o demônio, nervoso. Vista sua roupa e recomponha
sua capa vermelha que nossa aventura pelo universo melodramático da sua
natureza começará no instante em que recebermos as ordens supremas da corte.
- Como desejares, senhor das minhas trevas interiores. Hoje, me sinto
mais completa, ao saber que nesta tarde de outono serei banhada pelo líquido
das tuas descobertas. Anseio escalar o mundo, enxergar e alcançar com minha
performance sobre-humana suas belas paisagens e seus interiores vestidos de
rubi, só assim chegarei ao ápice da minha misteriosa invocação.
- Cala teu coração, neste diálogo que poderá desvendar as cores diáfanas
e cintilantes de tua alma. Bebe meu sangue translúcido inveterado, para sermos
um, uno, universal, neste cubículo monumental de paradoxos ao qual me dirijo
como universo inventado pela música furiosa dos deuses.
- Creio, interrompeu a Srta. Devia me contar com riqueza de detalhes
sobre os princípios que regem minha criação. Já não me permito examinar meu passado,
sabendo que suas águas estão letárgicas, caminhando para o infinito da dor e do
prazer, esta arte encantadora da carne.
No submundo da consciência humana, a impenetrável percepção cria seres
dotados de realidades fantásticas, que julgam a alma e cronometram a vida no
ponteiro ininterrupto do grande relógio dourado, ornamento principal da entrada
do mundo dos demônios; o tempo é o prêmio que corre velozmente, ao encontro da presa final.
O semblante disforme do gênio raro despontava na face pálida da Srta.
que, em suas noites solitárias, divagava embalada na leitura de clássicos que
lhe apresentavam cenas bestiais da moralidade humana. Baudelaire, o flanêur parisiense, expectador atento
dos bulevares noturnos, desvendava-a como um cigarro em seu último trago, sutil
em delícias indescritíveis aos apáticos dos vícios modernos. Oscar Wilde,
esteta emblemático do século XIX, conhecia sua alma como a devoção ao seu
Dorian Gray, de pactos e conjurações pela juventude eterna, assim lhe
despontava o riso secreto das indecências internas, sua corrupção consciente. E
Victor Hugo, a quem lhe devia a ternura e a humildade da alma, que transitavam
entre a aura odorífera e áspera dos divinos caminhos do seu corpo esguio.
Seus vícios flutuavam sôfregos em sua pele e lhe despontava terrores que
o demônio de suas noites sabia embalar com um ritmo encantador na voz. –
Querida dê-me mais uma dose dessa bebida alaranjada que se assemelha ao âmbar
derretido na taça larga, até que o cheiro marcante desça sobre seu corpo
talhado em vidro. Assim
era o tom mórbido e fascinante da sua voz.
O demônio vinha da dimensão dos castelos fortificados, com torres
magníficas no alto das colinas e paisagens silvestres, que imaculavam a vida de
animais perigosos e sanguinários, os comparsas da vida submersa nos degraus do
inferno. Lutas constantes ocorriam nas fendas abismais dos incontáveis
castelos. Lá, os seres horríveis decidiam buscar os pactos com os humanos propícios
a entregarem suas vidas pela total e sublime sensação do corpo e da alma, os
dois que, juntos, estampavam a face perfeita da bestialidade humana,
corruptível e venenosa.
Os embates dos reis nórdicos, que deixaram suas histórias fantásticas
para o conhecimento da humanidade, representavam com quase total fidelidade os
instintos secretos do demônio, a vida desregrada, as lutas e conquistas em
territórios longínquos, mórbidos e despovoados, que mais se assemelhavam ao
mundo insano dos zumbis, tão retratado na arena trágica das histórias de homens
e mulheres que faziam pactos secretos em suas torres de marfim.
A divagação que existia ente os dois seres de naturezas complexas e
diferentes, era cadenciada pela sensação sôfrega do perigo da não entrega, da
espécie de desespero que se perde na consciência de uma vida dupla, que jamais
poderá cingir-se, a não ser pelo preço do sangue derramado sobre a alma
perdida, já entregue aos desígnios divinos, combatida e prostrada pelas
palavras pronunciadas e seladas ao sangue ainda morno do corpo que se entregara
aos fetiches demoníacos.
Como no ritmo que conduz ao pacto, para a Srta. P. existia somente a
certeza e uma espécie de indagação que dava formas ao sangue e as palavras
pronunciadas ao universo. Seu demônio tomara formas que, sem ele, sua vida não
teria o sentido de sua existência sombria e ensurdecedora. A beleza dos seus
atos transfigurava um ser, em forma de homem nu, pictórico, encantador, a fonte
suprema da destruição.
- Vamos, deixa tua marca em minha pele cortada, tu, meu demônio de olhos
penetrantes, cheiro profundo, membros voluptuosos e impressões minuciosamente
voltadas para as fraquezas humanas.
- Minha filha, da morte e da vida, que já provaste de todos os sabores
entorpecentes e vívidos; conheces minhas regras e formas de expressar o cálice
rubi do teu sangue. Meu real desejo é que, em tuas entranhas, renasça minha
forma de anjo jovial. A juventude é para mim a forma da eternidade, é nela que
transformo minhas esfinges humanas em figuras imortais, que arranjo suas danças
nos enganos da sombria mortalidade do homem.
Nas passagens dos diálogos, a Srta. P percebia o trivial magnetismo que
seu demônio, ainda desconhecido, exercia em sua personalidade melancólica.
Soubera que seus encantos fáceis e mirabolantes esculpiam a face dos malgrados
enganos que presenciara nos romances ou ficções reais. Existia um diálogo
intenso dentro de si, que não era do conhecimento do demônio - talvez sua voz
sublimasse o horror que estava prestes a emergir de sua alma infame, que
outrora ansiava pela nobreza dos espíritos elevados. – Necessito de uma vida
repleta de grandes acontecimentos, de fantásticas surpresas que revelem meu ego
subumano para o mundo; que o mundo conheça minhas forças interiores e sua
estupefação quando provoca a fúria dos deuses, será minha natureza mostrando a
forma nua de minha existência.
O pacto e a misteriosa elevação da sua alma estavam por vir. Seu demônio entoava
o ritual da quinta etapa do envenenamento atroz que move o absurdo universo das
coisas humanas. Dos humanos, ele entendia muito bem; das fraquezas, do
precipício, das glórias e dos banquetes que se seguiam por dias ininterruptos,
em companhia de artistas, bobos da corte, damas que não ousavam sequer
pronunciar suas idades, rapazes e moças ansiosos por novas fontes de prazer, a
roda-viva que perscruta os antagonismos psicológicos de cada ser.
- Chegou a sua hora, minha discípula inusitada. Vejo em seus olhos o
brilho do acontecimento, como a seda pérola que resplandece diante dos raios de
sol da manhã. Não temas, serei teu pai e único tutor, até o fim dos seus dias.
Provarás de todas as sensações dos mundos insaciáveis dos loucos e da glória da
fama; pisarás teus inimigos como a cobra rastejante sobre o orgulho envenenado
do homem; sentirás a chama ardente das paixões que atingem o ápice na pele
radiante dos jovens. E prosseguiu, com sua voz eufórica e inebriante, antes que
a Srta. P. lançasse alguma pergunta a respeito do ritual:
- Tu, linda Sta., será como a fina rosa vestida de cores, teus seios
voluptuosos sugarão os olhares dos amantes que o mundo ainda não descobriu; em
tua mesa sentarão a riqueza, o fausto, a luxúria, o poder; tua casa será
habitada por inteligências que a buscarão para saciar seus cérebros gigantes. É
o que te darei. E continuou, com sua voz suave e inebriante:
- Não temas minha força e meu conhecimento além do humano; viajo nas
esferas que a ingenuidade do homem não alcança, e quando vem ao meu encontro,
proponho o pacto de suas vidas, em troca do mundo que sempre sonhou, mas não
lhe fora permitido. Falsa humanidade, de indivíduos sonhadores. E disse,
decidido:
- Não a permito que sonhe, mas que realize todos os seus desejos
escondidos no fino véu de sua alma corrupta.
- Meu Mestre, assim é que te chamarei. Se me vestires com tuas finas
sedas pérolas e glórias douradas, o que mais pedirei em teu nome? Permita-me
ser tua discípula e beber do teu cálice cor púrpura.
- Minha filha, que estimo calorosamente, meu dever para contigo é cuidar
da sua alma. Dize-me o deseja nesse momento, que a satisfarei em fina taça de
prata ornada com delicadas rosas de pétalas de ouro e botões de rubi.
- Desejo dominar o coração dos amantes mais orgulhosos da face da terra, tomar-lhes
suas deusas de assalto, porque, em minha solidão, a única coisa que me valeu a
pena, foi a exausta e sublime percepção de mim. E prosseguiu, calmamente:
- Outrora, fui eclipsada pela presença ornada de cores prismáticas, do
negro, vermelho, púrpura, dourado; da enigmática silhueta perfeita de um ser que,
em forma de homem, trouxe-me desejos e sensações únicas, provou a minha
verdadeira individualidade, rasgou minha alma e a transportou em seu voo de embriaguez
e clímax constante.
Seguiu-se o silêncio e alguns instantes de reflexão. À noite, moldavam-se
olhos vermelho-aveludados do demônio e a histeria corrupta da Srta. P – havia a
completude do ato, que na força das palavras que conduziram ao pacto, dois
seres de naturezas volúveis existiam em substâncias sincronizadas.
- Minha deusa do submundo, teu desejo é correspondido e está nas mãos do divino
mestre do submundo humano, conhecedor de desregradas manifestações interiores. E,
trazendo uma sensualidade mórbida no canto da boca, gritou: - Seremos os deuses
da vida e da morte!
Misteriosamente, a voz do seu demônio interior ecoou nos confins do
universo a submissão da Srta P. ao seu mundo. Ela tinha lhe dado a garantia e
possessão de sua alma, em troca de vícios e vaidades que o mundo celebrara como
as artes encantadoras do viver.
A Srta. P. enveredou num silêncio interior. Havia o peso do pacto eterno
em sua alma.
***
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