Imagem do Artista Plástico Eulâmpio Neto -http://www.eulampio.com/index.php?lang=pt |
Alguns presentes são tão raros e especiais pelo simples fato de estarem
além de nós. O invisível, o escapável, o fugidio é o que nos deixa ansiosos
pela possível descoberta do grande dia.
A essa altura, queridos amadores da vida, alguém está a se perguntar o
porquê de elucidar uma conversa, talvez um pouco complexa, acerca de um
"presente". O presente de que falo não é daqueles que a gente ganha,
embalados em caixinhas coloridas e fitas de cetim, no dia do nosso esperado aniversário
ou outra ocasião especial. Falo do presente que mais surpreendeu meus olhos
numa manhã de 29 de outubro.
Para mim o dia despontou como sempre - igual a todos. Mas neste dia,
talvez acompanhada de uma percepção mais sensível, vi que havia um pouco de
mistério no balançar das árvores que, ora pareciam flutuar, ora arrastar-se
pelo mundo, carregando o peso da loucura humana. - Foi uma sensação estranha. Havia um dia
lindo e um pouco nublado, daqueles que encantam a gente com a batida calma da
natureza.
Fui, literalmente, impulsionada a sair de casa e dedicar um pouco do
meu tempo a algo que não estaria muito distante dali. Lembro que, ao girar a
maçaneta e sair em direção a esse invisível que já estava aos gritos, uma
sensação pulsante de loucura atacara minha mente. Eu, sempre amante dos
discursos sobre a loucura, esse raio incontrolável do ser humano, mas tão vital
e escapável que, uma simples aproximação entre nós (a loucura e eu), poderia
levar minha alma para sempre embora deste mundo tedioso e insuportável, como se
esvaia diante de mim.
A caminho da biblioteca - nesse dia que eu desejara tanto estar em
outro lugar do mundo, talvez perdida em algum ponto do Universo -, mas em
contato com minha própria carne, escapando desse mundo insensível e esmagador,
percebi o trajeto diário banal de minha vida, do amanhecer ao anoitecer. Não aprendi
a me conformar com a mesmice das coisas - a vida para mim não basta em si mesma
ou aceitar as coisas como são e não como deveriam ser, é desde sempre uma
masmorra de inconstâncias e lutas internas.
Ao chegar à biblioteca e desembalar meus livros sobre a mesa, correu-me
um raio de curiosidade para subir mais um degrau - achei que não estava
confortável naquele lugar costumeiro de estudos, o qual me era tão familiar.
Avancei, vagarosamente, até encontrar uma mesinha, num lugar de pouca luz, mas
que serviria para eu recostar a cabeça por um tempo e pensar um pouco sobre o
que transcorrera durante aqueles anos que se passaram, tão cheios de sonhos e
projetos ainda por realizar.
Mas, eis que uma súbita inquietação estremeceu minhas pernas e me
fizeram perscrutar o lugar para onde fora, com receios e ansiosa pela
descoberta. Soubera, ao longo daquele caminho, que a manhã não passaria
incólume a um dia tão estranho, mas único.
Ao dar os primeiros passos, enveredei por um pequeno labirinto de
livros velhos e empoeirados, desgastados pelo conhecimento adormecido dos
grandes homens, que deveriam dedicar mais seus suspiros às coisas que
verdadeiramente importam: as que superam a vida em seu tamanho.
Passando
pela galeria de exposições, deparei-me com um trabalho excepcionalmente humano,
sublime em loucura, dor, medo, grito, sussurro, angústia, saudade, decepção,
desassossego, incerteza, remorso, solidão... os sentimentos mais dolorosos e aprisionantes
que o ser humanos pode construir.
- Eulâmpio, era esse o nome do
gênio criador. Soubera incrustar em suas esculturas de terracota as sensações
que eu me deparara todos os dias, seja ao sentir a decepção e os olhos rasos
d'água das pessoas ou beber de minha dor infinda.
Diante de tantos personagens arrebentados pelos sussurros da loucura,
vi-me diante da história sem fim do ser humano; vi, em cada rosto, veias a
escorrerem pelos pescoços magricelos de seres sem vida, de pura argila, mas de
espíritos tão humanos quanto o meu. Para cada dose de loucura e suas infinitas
sensações, havia um título para retratar a expressão pesada que pousava em cada
rosto.
Vi realmente que a vida guardara um presente de grandes responsabilidades
para mim - passar para as pessoas suas faces nuas e suas doses de loucura de
todos os dias não é tarefa fácil, muito menos humana. É algo que exige o
despertar de algo maior, que não arranja lugar dentro de nosso corpo coberto de
loucuras pelas sensações que o mundo nos causa.
A partir daquele momento tilintante em minha alma, as histórias
daquelas criaturas começaram a adquirir formas naquelas folhas tão brancas que
guardara dentro de um caderno pouco rabiscado. Seus sentimentos estavam
entrelaçados por vivências distintas e por uma loucura constante, desmedida.
Meu presente de aniversário tomava formas cada vez que roubava por direito
um título da loucura - o presente que mais parecia um grande trabalho, corria
por entre meus dedos a sapriscar a tinta no papel como a vida que flui nas
crianças em dias de passeio no parque.
Eram muitos personagens tomados pelas sensações que eu degustava
freneticamente - tomei consciência que havia treze seres angustiados pelas
loucuras e que, como recompensa, eu teria que trazer treze vidas repletas de
histórias que pudessem exprimir o motivo de suas loucuras tão vis. Suas
histórias não eram estranhas; ecoavam os longos suspiros dos gritos ritmados, todos
juntos.
Aquelas vidas entrelaçadas pela loucura mostraram-me a forma
translúcida do presente que a vida reservara - decidi escrever a história
mágica de todos aqueles seres que ainda estavam por vir a este mundo cheio de
incertezas e temores.
Treze poesias foram escritas, infladas de muitas loucuras e
palpitações. As idéias transitavam de uma ponta a outra, desesperadas, não me
deixavam descansar ou sequer pensar no arranjo de meus versos, apenas surgiam,
nuas e sem pudores. Em poucas horas, ali estava meu presente raro, singelo e de
um valor inestimável.
Havia diante de mim e das infindáveis vidas que flutuavam loucas em
minha frente - para eu juntá-las em fórmulas perfeitas -, o cálculo exato que
não sei de onde, viera parar em minhas mãos.
* * *
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