O homem
o qual me deparei hoje trazia uma flanela amarela, encardida pelos polimentos
de tantos carros que as pessoas lhe ordenam que lave todos os dias, sem direito
às férias, feriados ou algum descanso. Tinha por volta de quarenta e cinco anos
de idade, mal contemplados pelas intempéries do destino; mostrava um rosto
suado, sofrido, mas não pude reparar ali a miserabilidade que acode a alma dos
desgraçados; vi que em sua postura, como homem, existia uma linha tênue de
sobrevivência permitida que o enchia de orgulho no peito; que, em se tratando
de suas angústias cotidianas algo cruel se inflamava e lhe agraciava com
migalhas para completar o ciclo elementar da vida.
No
canto, ancorada em um poste, rente à calçada, estava uma cumbuca amassada de
alumínio, com restos de comida misturados, sem atração nenhuma ao olhar mais
faminto; àqueles restos estavam recostados como sobras de uma refeição que não
contentara, porque as experiências extraordinárias da alta gastronomia não
estavam ali; supostamente, existia o dever cumprido de ter alimentado seu
organismo para mais um dia de labuta. Pude reparar que sua boca ainda remexia a
comida, um ato disforme, que não havia prazer em mastigar a última porção.
Talvez
tenham passado despercebidas as manchas que existem em suas mãos, pois o
movimento desconcertante da flanela, os restos da comida e o lugar perpetuado
pelas belezas de um dia de chuva, que embala o mar na sublime calmaria e
desnuda as pedras engolfadas pelo silêncio, magnitude e mistério do senhor das
águas, tomaram o cenário que tanto embasbacava os transeuntes.
Nesse
caminho e com toda essa narrativa já incrustada em minha mente, a passos lagos,
eu caminhara em direção às delícias de um restaurante à beira-mar, para
saborear um prato diversificado e beber algo para acompanhar a refeição. Posso
confessar que a história ficou gravada a cada movimento dos talheres, das
pessoas ao redor, dos garçons que passavam com os pedidos, dos instrumentos dos
músicos que mudavam as tonalidades, enfim, o horror da verdade já mostrara seus
demônios insustentáveis dentro de mim.
Enquanto
isso, o olhar atento do flanelinha transitava entre os cenários; os carros, que
estacionavam junto à calçada à beira-mar, os clientes que estavam saindo do
restaurante, do outro lado da rua; e seu mundo decadente, conformado pelas
sobras de uma sociedade atônita, sobrevivente das delícias da superficialidade
bestial que acode o mundo contemporâneo.
Já me
acostumei com a terrível verdade de que tenho faro ácido para as misérias humanas,
detecto os instintos mais febris e desgraçados que percorrem vielas, subúrbios,
bairros de elite; estão entre nós, passeiam pelas calçadas dos bares,
restaurantes, supermercados, lojas, avenidas movimentadas; andam, perambulam de
forma demente, sem rumo, lugar ou algum compromisso marcado. Quando os vejo,
chamo-os em meu inconsciente de tipos humanos, ecoam dentro de mim como uma
música triste que quebra o mais fino vidro e rasga nossa pele à espera das
surpresas fantasiosas.
E são
esses tipos que me fazem respirar todos os dias e sentir a parte mais humana
que existe dentro do homem; são eles, que negam o conformismo elaborado pelas
mãos de ferro dos nossos governantes. Estes carrascos que incutem pragmatismos
inúteis criam campos de batalhas e mascaram a sociedade com campanhas fúteis,
custeadas com o dinheiro de tipos humanos como o flanelinha, os miseráveis das
ruas, você, que está lendo essa crônica perniciosa e eu, que de tão inflamada
pelas situações que me fazem sobreviver, tenho a missão de transmitir as
futilidades da miséria alheia através da literatura, para que algum dia, quando
vier o paraíso prometido, eu possa ver que meu protesto não foi em vão.
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