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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O Flanelinha e seu destino



Imagem: disponível em Hanna Brescia in Pictures


O homem o qual me deparei hoje trazia uma flanela amarela, encardida pelos polimentos de tantos carros que as pessoas lhe ordenam que lave todos os dias, sem direito às férias, feriados ou algum descanso. Tinha por volta de quarenta e cinco anos de idade, mal contemplados pelas intempéries do destino; mostrava um rosto suado, sofrido, mas não pude reparar ali a miserabilidade que acode a alma dos desgraçados; vi que em sua postura, como homem, existia uma linha tênue de sobrevivência permitida que o enchia de orgulho no peito; que, em se tratando de suas angústias cotidianas algo cruel se inflamava e lhe agraciava com migalhas para completar o ciclo elementar da vida.



No canto, ancorada em um poste, rente à calçada, estava uma cumbuca amassada de alumínio, com restos de comida misturados, sem atração nenhuma ao olhar mais faminto; àqueles restos estavam recostados como sobras de uma refeição que não contentara, porque as experiências extraordinárias da alta gastronomia não estavam ali; supostamente, existia o dever cumprido de ter alimentado seu organismo para mais um dia de labuta. Pude reparar que sua boca ainda remexia a comida, um ato disforme, que não havia prazer em mastigar a última porção.



Talvez tenham passado despercebidas as manchas que existem em suas mãos, pois o movimento desconcertante da flanela, os restos da comida e o lugar perpetuado pelas belezas de um dia de chuva, que embala o mar na sublime calmaria e desnuda as pedras engolfadas pelo silêncio, magnitude e mistério do senhor das águas, tomaram o cenário que tanto embasbacava os transeuntes.



Nesse caminho e com toda essa narrativa já incrustada em minha mente, a passos lagos, eu caminhara em direção às delícias de um restaurante à beira-mar, para saborear um prato diversificado e beber algo para acompanhar a refeição. Posso confessar que a história ficou gravada a cada movimento dos talheres, das pessoas ao redor, dos garçons que passavam com os pedidos, dos instrumentos dos músicos que mudavam as tonalidades, enfim, o horror da verdade já mostrara seus demônios insustentáveis dentro de mim.



Enquanto isso, o olhar atento do flanelinha transitava entre os cenários; os carros, que estacionavam junto à calçada à beira-mar, os clientes que estavam saindo do restaurante, do outro lado da rua; e seu mundo decadente, conformado pelas sobras de uma sociedade atônita, sobrevivente das delícias da superficialidade bestial que acode o mundo contemporâneo.



Já me acostumei com a terrível verdade de que tenho faro ácido para as misérias humanas, detecto os instintos mais febris e desgraçados que percorrem vielas, subúrbios, bairros de elite; estão entre nós, passeiam pelas calçadas dos bares, restaurantes, supermercados, lojas, avenidas movimentadas; andam, perambulam de forma demente, sem rumo, lugar ou algum compromisso marcado. Quando os vejo, chamo-os em meu inconsciente de tipos humanos, ecoam dentro de mim como uma música triste que quebra o mais fino vidro e rasga nossa pele à espera das surpresas fantasiosas.



E são esses tipos que me fazem respirar todos os dias e sentir a parte mais humana que existe dentro do homem; são eles, que negam o conformismo elaborado pelas mãos de ferro dos nossos governantes. Estes carrascos que incutem pragmatismos inúteis criam campos de batalhas e mascaram a sociedade com campanhas fúteis, custeadas com o dinheiro de tipos humanos como o flanelinha, os miseráveis das ruas, você, que está lendo essa crônica perniciosa e eu, que de tão inflamada pelas situações que me fazem sobreviver, tenho a missão de transmitir as futilidades da miséria alheia através da literatura, para que algum dia, quando vier o paraíso prometido, eu possa ver que meu protesto não foi em vão.



 



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